Por Maristela Zamoner
Há alguns séculos a fragmentação do
conhecimento humano não era tão clara e proposital quanto agora. Os
intelectuais formavam-se pela influência concomitante de várias áreas dos
saberes humanos. Hoje um pesquisador das Ciências Exatas ou Naturais que flerte
acintosamente com a arte, ou declaradamente afeito aos sabores dos bailes, pode
não ser muito bem visto em certos redutos que costuram o conhecimento a formalidades
e corporativismos. Curiosamente, nestes mesmos bancos tenta-se desajeitadamente
a interconexão de conteúdos com esforços quase artificiais que me trazem à
mente palavras como interdisciplinaridade ou transdisciplinaridade. Mas no
passado um cientista útil era capaz de fazer diferentes áreas dialogarem com
uma naturalidade que agora pouco se entende.
Quem tiver paciência para ler o Diário do
Beagle, de Charles Darwin, por exemplo, vai perceber um naturalista de
sensibilidade e conhecimento desamarrado que extrapolava em muito o âmbito da
História Natural. Darwin começava sua segunda década de vida mostrando na
redação um deslumbre de dar inveja a muitos poetas maduros da contemporaneidade.
Citava lugares, autores, referências de arte e artistas dos mais variados. Ele foi
um daqueles pensadores com capacidade de entender a vida pela inteligência da
articulação de saberes. Possuía olhares mais imaginativos e apaixonados que os
de um enlaçado acadêmico que ora se considera vivo, mas suas habilidades mais
valorizadas não têm compromisso com o novo. A essência atrevida, que é o amalgama
da arte, estava autorizada para a Ciência...
E foi em visita à América do Sul, durante a
viagem que inspirou e fundamentou a grande obra A Origem das Espécies, publicada em 1859, que Charles Darwin registrou
suas frequências ao teatro, para um baile num dia e para ouvir a ópera da Cenerentola, de Rossini, no dia seguinte.
O jovem de 23 anos visitava Montevidéu, cidade que para ele tinha um ar de
“grande riqueza e ocupação”. Todo o conteúdo que consta em seu diário de
naturalista no dia 23 de novembro de 1832 deteve-se a sua impressão sobre aquele
baile:
23. À noite houve um grandioso baile que se ofereceu com a
finalidade de celebrar o restabelecimento do presidente. Era uma cena muito
mais alegre do que teria podido pensar que este lugar conseguisse gerar. O
desejo que têm os habitantes de surgirem esplendidamente vestidos nessas
ocasiões é excessivo. E, para realiza-lo, as senhoras não pouparão sacrifícios.
A música era em compasso muito lento e dançante e, embora muito formal, possuía
muita graciosidade.
O baile ocorreu no teatro. Nada me surpreendeu tanto quanto
a distribuição da casa: todas as partes que não estavam efetivamente ocupadas
pelos dançarinos estavam abertas às mais baixas classes da sociedade, de modo
que todas as passagens para os camarotes, os fundos da plateia, estavam
preenchidas por quaisquer pessoas que quisessem espiar. E ninguém jamais
pareceu sequer conceber a possibilidade de uma conduta inadequada por parte
deles. Como são diferentes os hábitos dos ingleses em noites de gala!
Não sabemos se Darwin dançou nesta ocasião em Montevidéu.
Mas a última frase nos deixa pensar que ele conhecia bem os hábitos ingleses dos
quais os bailes faziam parte. Também no tempo em que viveu na Universidade de
Cambridge, antes desta viagem, pode dar vasão aos seus gostos por diversidades
como culinária, excursões, jogos, pintura, música e... bailes*. De qualquer
forma, aquele momento num continente distante, incitou reflexões bem variadas...
Não deixa de ser um relato bastante atraente o do dia 23 de novembro de 1832,
trazendo a pauta em apenas dois parágrafos uma heterogeneidade de relações, percepções
e opiniões que aglutinaram encanto, crítica, política, diferenças culturais e
sociais, expressão feminina e mais, comportamento, tradição, inovação, costumes,
música, dança... Quase quatro décadas depois Darwin mostrava ainda mais
profundidade no olhar sobre cadência, ritmo e suas decorrentes inspirações. Em
seu livro A Origem do Homem, de 1871,
registrou: “a percepção de cadências musicais e de ritmo provavelmente é comum
a todos os animais e sem dúvida depende da natureza fisiológica comum de seus
sistemas nervosos”.
Talvez falte aos nossos cientistas de hoje um
pouco deste desprendimento para articular com alegria e empolgação a variedade
de ciências e vertentes dos pensamentos que construímos. Talvez falte arrojo
para ousar a ver a natureza por ângulos menos limitados do que estes obtusos aos
quais estamos adestrados... Talvez falte um pouco da música e da dança que ensinam
liberdade a inteligência humana.
Saiba
mais:
RIZZI,
Milton. Enfermedades y muerte de Charles Darwin. Rev. Méd. Urug.,
Montevideo , v. 32, n. 2, p. 123-130, jun. 2016.