Por Maristela Zamoner, bióloga
Durante o 4º Encontro de Observação de Borboletas foram apresentados muitos conteúdos. Um deles citou o registro fotográfico de uma espécie não descrita em uma área particular da Região Metropolitana de Curitiba, na qual foi reconstituída Mata Atlântica ao longo de trinta anos, a partir de um local totalmente desflorestado e utilizado para plantação de milho.
As fotografias do exemplar estão disponibilizadas na plataforma de ciência cidadã iNaturalist, para qualquer pessoa no mundo verificar, e foi apontado pelo especialista Keith Willmott do Museu de História Natural da Flórida, como não descrita.
Ao final do evento, uma jovem estudante de biologia me procurou em particular e perguntou sobre a possibilidade de descrição desta espécie por fotografia, já que não havia sido coletado o exemplar. A pergunta me soou legítima, diferente de uma travessura própria da juventude inexperiente, soldadesca, ideológica ou quixotesca. Parecia honesta.
Naturalmente a atividade de descrever espécies não é parte de propósitos do projeto no qual as atividades apresentadas no evento eram desenvolvidas. Geralmente é atividade do interesse de taxônomos e não de profissionais que voltam seus esforços para o estudo dos animais em vida, especialmente se em ambiente natural. Mas a dúvida da jovem transparecia uma preocupação verdadeira de que seria impossível uma descrição sem um exemplar coletado, o que tem sua lógica uma vez que há séculos esta é a conduta, por vários motivos, reforçada em muitos meios. Merecia sim uma resposta tão honesta quanto a pergunta.
Então, relembramos que em 2018 abordamos esse tema no livro Lepidopterologia: novas perspectivas em pesquisa e conservação, discutindo descrição de exemplares da fauna feitos a partir de fotografias. Não é comum, mas os primeiros casos já são fato.
Mesmo sob a resistência de pesquisadores tradicionais, o International Code of Zoological Nomenclature avança na direção de se adaptar às mudanças na esfera das questões ambientais e tecnológicas, já admitindo e legitimando até a descrição de novas espécies com base em fotografias e não somente em exemplares conservados. O debate neste âmbito é acalorado e emergente.
E devem se tornar mais frequentes considerando as condições de reduções de áreas naturais e o surgimento de tecnologias que oportunizam o uso consistente de metodologias não destrutivas. Talvez o maior problema para o avanço deste tipo de atividade seja a dificuldade de ir além do que nos parece mais seguro, confortável, estabelecido ou protegido por um pequeno grupo detentor de regras, acessos e poderes.
Mas independente de todo o contexto que clama pela mudança de paradigma, incluindo suas consequências e naturais resistências nos meios mais tradicionais, há outra questão digna de atenção.
As coleções científicas que contém lepidópteros, destacadamente no Brasil, não estão democratizadas. Os observadores de borboletas e mesmo profissionais que atuam na área não têm acesso livre aos seus conteúdos, embora em sua maioria sejam de natureza pública. Isto significa que apenas algumas poucas pessoas têm acesso ao que há nelas. Mas sabemos que parte de seus exemplares estão armazenados com erros de identificação, com etiquetas perdidas ou trocadas, sem nenhuma identificação e, entre eles, existem engavetados os que foram sacrificados há muito tempo e ainda não receberam descrição.
A questão é, portanto: se temos insetos mortos não descritos em coleções, qual a razão de matar mais antes de descrever todos os que jazem em gavetas inacessíveis ao público?
A consequência disto é que quando fotografamos em campo uma espécie não descrita, é inviável saber se há ou não um exemplar dela já coletado, já sacrificado e guardado em alguma gaveta esperando descrição, enquanto existem pesquisadores dedicando seu tempo a retirar mais exemplares da natureza. Geralmente são espécies raras, ou raríssimas, logo não há qualquer prova científica de que retirar mais exemplares delas da natureza seja seguro para conservação da espécie.
Naturalmente sem esta pergunta da jovem, esse assunto não seria tratado por mim, pois não é assunto diretamente do interesse de quem escolhe trabalhar com bichos vivos. Mas como a pergunta foi feita, e de forma legítima, cabe abertura para reflexões:
Não seria tempo de promover uma gestão parcimoniosa das tarefas relacionadas às coleções científicas?
Não é tempo de pensar que, antes de seguir retirando mais borboletas dos ambientes naturais e aumentando acervos, seria sábio resolver todos os problemas daqueles que já foram tirados da natureza, sacrificados e permanecem por anos numa gaveta sem serem descritos?
Afinal, estes exemplares não descritos que estão em coleções científicas aguardam que se faça algo para justificar sua morte antes de desaparecerem definitivamente. Considerando ainda as condições de manutenção de muitos dos museus, com acervos agigantados sofrendo com falta de recursos de manutenção, seria bom que isto fosse feito antes destes exemplares se tornarem cinzas, como ocorreu com o acervo do Museu Nacional. Ou seja, é urgente descrever as espécies não descritas que já contam com exemplares mortos em coleções científicas.
A questão é bem ilustrada pelo caso da espécie Arzecla straelena, que possui um único registro no Brasil, até se prove o contrário. O bicho foi registrado vivo em ambiente natural, uma pequena unidade de conservação urbana, em março de 2019. Não foi coletado. E no momento do registro não havia sido descrita. Poderíamos pensar que a descrição, se não fosse possível por fotografia, seria inviável. Mas sua descrição aparece na literatura meses depois do registro em campo no Brasil, em dezembro de 2019, feita a partir de coleta realizada na Colômbia, por um pesquisador do Museu de História Natural da Hungria. As características da espécie foram reconhecidas no registro brasileiro de março de 2019 pelo próprio descritor da espécie, que generosamente apontou suas características e ainda admitiu uma possível distribuição original bem mais ampla do que a cogitada no momento da publicação da descrição. Ela foi registrada viva em um estudo que fez mais de quatro mil e quinhentos registros no local em quatorze meses, e destes, um único foi desta espécie. É preciso refletir o que significaria para conservação ter sacrificado o único exemplar que foi encontrado em território brasileiro ao longo de séculos. Existem espécies com mais registros no país, que constam em listas de ameaçadas, e sua coleta é crime ambiental. Se não há como provar cientificamente que seria seguro para conservação da espécie, não pode ser coletado. Claro, isto se atribuímos alguma importância as ideias contidas, por exemplo, no Princípio da Precaução do Direito Ambiental brasileiro atual, fruto de compromissos internacionais do país em favor da conservação da natureza. E por fim, sua coleta teria sido desnecessária para descrição da espécie, como ficou evidente. Fico feliz por não ter coletado, por saber que ela seguiu sua vida livre no ambiente natural.
Ainda há mais um ponto de interesse para a jovem questionadora que logo será bióloga, e para receber seu diploma, fará o seguinte juramento:
JURO, PELA MINHA FÉ E PELA MINHA HONRA E DE ACORDO COM OS PRINCÍPIOS ÉTICOS DO BIÓLOGO, EXERCER AS MINHAS ATIVIDADES PROFISSIONAIS COM HONESTIDADE, EM DEFESA DA VIDA, ESTIMULANDO O DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO, TECNOLÓGICO E HUMANÍSTICO COM JUSTIÇA E PAZ - RESOLUÇÃO Nº 3, DE 2 DE SETEMBRO DE 1997 do Conselho Federal de Biologia - Institui o Juramento Oficial do Biólogo, e dá outras providências
Tirar a vida de borboletas para incluir em coleções sem ao menos saber se suas espécies já não estão nelas representadas, não coaduna com este juramento. As coletas devem ser feitas sempre que necessário – NECESSÁRIO. Portanto, antes de coletar, é preciso provar que não há outro jeito de realizar determinada pesquisa e mais, que é seguro para conservação da espécie e das demais que com ela estabelecem relações ecológicas, é preciso demonstrar que o sacrifício do animal é mais urgente do que resolver os problemas acumulados por longo tempo nas coleções, como espécies não descritas.
Então, não seria ético da minha parte como bióloga profissional, trabalhar coletando e sacrificando ainda mais borboletas além das que já existem aos milhares em coleções científicas que nem democratizadas foram e crescem desafiando diariamente a própria segurança pela sua desproporção em relação aos recursos disponíveis. Não seria ético especialmente considerando que boa parte desses acervos é desconhecida - isto sim é prioridade a ser resolvida pelos responsáveis antes de matar mais. Não seria ético porque nossas áreas naturais continuam sendo dizimadas e não posso ser mais uma pressão negativa sobre a fauna, mesmo que autorizada inadequadamente por qualquer órgão ambiental. Não seria ético pois existem alternativas. Esse compromisso o biólogo assume no juramento repetido acima. Devo respeitar, pois sou bióloga, registrada no Conselho de Biologia.
Por fim a resposta a nossa jovem estudante fica definida nestes pontos:
1 – Descrições de espécies da fauna por fotografia, sem exemplar coletado, já são realidade e a probabilidade é que sejam apenas as primeiras de muitas vindouras. Aliás, as perguntas às quais deveríamos nos dedicar para responder precisariam estar relacionadas a como viabilizar mais descrições por fotografia, ou como obter indivíduos para sacrificar provando cientificamente que nenhuma das populações envolvidas sofreria qualquer comprometimento na natureza. Isso poderia trazer avanço.
2 – Antes de partir para a coleta de uma espécie não descrita, potencialmente muito rara, é preciso que as coleções sejam democratizadas para que qualquer contribuinte possa verificar livremente se outro exemplar da espécie já não foi coletado em algum lugar e aguarda descrição.
3 – Antes de sacrificar mais borboletas é razoável que todas as que já foram coletadas pela humanidade tenham sua taxonomia bem resolvida nas gavetas onde se encontram, especialmente se inacessíveis ao público que as sustenta.
4 – Como biólogos, precisamos estar atentos a ética de proceder coletas em um mundo de continuadas reduções de hábitat, em um país regido por princípios do Direito Ambiental acordados internacionalmente e determinadores da precaução que exige prova científica de que a coleta não comprometerá a conservação da fauna envolvida, em um país com coleções científicas não democratizadas, repletas de exemplares inacessíveis à população que paga por elas, que nos tornam incapazes de constatar o nível de redundância que provocaríamos coletando mais, aumentando custo de manutenção e risco de perdas irreparáveis reais e já testemunhadas.
Minha jovem, logo o futuro da fauna estará em suas mãos e você é livre para constituir seu próprio pensamento de forma autônoma, independente e livre. Faça-o de maneira responsável e não adestrada.
Por aqui, as portas estão abertas e tudo que registramos está democraticamente disponibilizado para a humanidade ver. Então, sigamos fazendo registros fotográficos para conhecer a VIDA das borboletas e, quem sabe até mesmo viabilizar futuras descrições de novas espécies por fotografia. Isto é compatível com a realidade ambiental, com a situação atual das coleções científicas brasileiras e com o juramento que nos autoriza a atuar como biólogos profissionais.
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