Imagine por um momento, que determinada área do conhecimento é dominada por um grupo de pessoas. Estas pessoas definem quem é aprovado em seleções de pós-graduação, em concursos para atuação profissional na área, quem atua ou não em revisão de pares de artigos científicos, portanto, quem publica e quem não publica, quem atua em políticas públicas que abrangem os conhecimentos envolvidos, em fim, estabelecem quem detém todo, ou quase todo, o poder sobre estas e ainda outras questões que, em conjunto, acabam por caracterizar uma área do conhecimento.
Agora imagine a hipótese de que esse grupo é composto por quatro homens, brancos, descendentes de europeus, heterossexuais, incluindo um idoso e três de meia idade. Quão diversa e inovadora você acha que pode ser a produção de conhecimento deste grupo? Mesmo que neste grupo exista quem permita a entrada na área, seja pelo motivo que for, de uma uma jovem mulher afrodescendente, de um jovem homem homossexual e outro filho de lavradores, se todos foram subjugados a anos de obediência seguindo valores, regras e dogmas do primeiro grupo, quanto diversa e inovadora será a produção científica desta área do conhecimento?
Então, vamos acrescentar algo mais nesta receita, uma pressãozinha seletiva chamada: produtivismo científico. Todos os atores desta hipótese, estão subjugados pela necessidade de produzir quantidades elevadas de artigos científicos para que seus currículos lhes permitam crescimentos na carreira e outros benefícios. Todos são potencialmente beneficiados pagando para publicar artigos, ou pior, publicando-os em acesso fechado para a sociedade que, não raro, é quem paga por esta produção científica velada. Este fator é bem conhecido e vem sendo acusado de culpado pelo aumento impressionante de retratações de artigos científicos feitas até pelas mais renomadas revistas do mundo, em razão de fraudes, roubo de dados, invenção de informações, plágio e tantos outros exemplos da mais baixa ciência. Qual é o resultado do poder sobre uma área do conhecimento estar nas mãos de poucas pessoas, pobremente diversas e subjugadas ao produtivismo científico? Não é difícil concluir: inovação pífia, reprodução de receitas antigas básicas, seguras, já aprovadas, que não enfrentam oposição, com alterações cosméticas prontas para os aplausos dos que leem a si mesmos.
Essa parece uma boa prescrição para que nada novo venha a surgir, para que todo o conhecimento gerado seja fruto de uma endogamia científica na qual tudo que nasce é fruto de cruzamento entre iguais, e nas mesmas condições ambientais.
Então, eis que surge algo inesperado, fora deste âmbito viciado. Novas tecnologias viabilizam que qualquer pessoa conduza suas próprias investigações científicas, de forma autônoma, independente e livre. São pessoas que simplesmente têm o desejo de conhecer algo e fazem o que está ao seu alcance para sua realização. Estas pessoas vêm sendo chamadas de cientistas cidadãos. Embora alguns destes atores estejam a serviço de cientistas profissionais, muitos, não estão. Exemplos deste perfil de ator inovador que surge na sociedade é possível encontrar em plataformas de biodiversidade e ciência cidadã, que somam centenas de milhares de pessoas livres fazendo suas descobertas independentes sobre a vida no planeta. Pessoas que tiram dinheiro do próprio bolso para descobrir sobre a biodiversidade, que levam dez anos para produzir um único livro, mas que trazem resultados inovadores, inéditos, revolucionários e, não raro, que efetivamente contribuem com a sociedade. Pessoas que não sofrem pressão de nenhum produtivismo científico, que não necessitam de nenhuma aprovação de terceiros para atuar, não têm vontade de ser seguidores deste ou daquele que um pequeno grupo trata como referência. Pessoas livres e interessadas em fazer algo realmente novo.
O que podemos esperar que aconteça em uma sociedade que vinha sendo dominada na área da produção científica pelos moldes do que delineamos no início deste texto, a partir do momento que a ciência cidadã começa a fazer jorrar seus resultados?
Esta é a reflexão que almejamos trazer aqui. Qual será a consequência desta mistura?
Inicialmente, o óbvio. Cientistas profissionais se apropriando do conhecimento produzido por cientistas cidadãos, simplesmente publicando-os em seus nomes sem sequer referenciar quem de fato produziu os conteúdos usados. Naturalmente isto gera reação e, provavelmente, esta situação encontrará um normal mais respeitoso do que estamos assistindo.
Mas o mais interessante é o que já começamos a notar. A liberdade do cientista cidadão, sua autonomia, está oportunizando a renovação da produção científica. Novos métodos estão efetivamente trazendo descobertas valiosas para toda a sociedade. Apesar das dores do encontro destes dois mundos distintos envolvidos na produção científica, é possível que a ciência cidadã contribua com a sociedade muito além do que nos parece em um primeiro olhar. Muito além das descobertas científicas em si. O cenário atual parece indicar que a ciência cidadã tem potencial para renovar a ciência como um todo, moderando seus males, relembrando que a ciência não nasceu da necessidade humana de ter seu trabalho pago, nasceu da paixão pelas descobertas. Talvez essa seja a contribuição mais profunda que a ciência cidadã entregará para a sociedade. Estamos prontos para essa redescoberta?