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domingo, 15 de abril de 2018

23 de novembro de 1832, o baile de Darwin


Por Maristela Zamoner


Há alguns séculos a fragmentação do conhecimento humano não era tão clara e proposital quanto agora. Os intelectuais formavam-se pela influência concomitante de várias áreas dos saberes humanos. Hoje um pesquisador das Ciências Exatas ou Naturais que flerte acintosamente com a arte, ou declaradamente afeito aos sabores dos bailes, pode não ser muito bem visto em certos redutos que costuram o conhecimento a formalidades e corporativismos. Curiosamente, nestes mesmos bancos tenta-se desajeitadamente a interconexão de conteúdos com esforços quase artificiais que me trazem à mente palavras como interdisciplinaridade ou transdisciplinaridade. Mas no passado um cientista útil era capaz de fazer diferentes áreas dialogarem com uma naturalidade que agora pouco se entende.

Quem tiver paciência para ler o Diário do Beagle, de Charles Darwin, por exemplo, vai perceber um naturalista de sensibilidade e conhecimento desamarrado que extrapolava em muito o âmbito da História Natural. Darwin começava sua segunda década de vida mostrando na redação um deslumbre de dar inveja a muitos poetas maduros da contemporaneidade. Citava lugares, autores, referências de arte e artistas dos mais variados. Ele foi um daqueles pensadores com capacidade de entender a vida pela inteligência da articulação de saberes. Possuía olhares mais imaginativos e apaixonados que os de um enlaçado acadêmico que ora se considera vivo, mas suas habilidades mais valorizadas não têm compromisso com o novo. A essência atrevida, que é o amalgama da arte, estava autorizada para a Ciência...

E foi em visita à América do Sul, durante a viagem que inspirou e fundamentou a grande obra A Origem das Espécies, publicada em 1859, que Charles Darwin registrou suas frequências ao teatro, para um baile num dia e para ouvir a ópera da Cenerentola, de Rossini, no dia seguinte. O jovem de 23 anos visitava Montevidéu, cidade que para ele tinha um ar de “grande riqueza e ocupação”. Todo o conteúdo que consta em seu diário de naturalista no dia 23 de novembro de 1832 deteve-se a sua impressão sobre aquele baile:



23. À noite houve um grandioso baile que se ofereceu com a finalidade de celebrar o restabelecimento do presidente. Era uma cena muito mais alegre do que teria podido pensar que este lugar conseguisse gerar. O desejo que têm os habitantes de surgirem esplendidamente vestidos nessas ocasiões é excessivo. E, para realiza-lo, as senhoras não pouparão sacrifícios. A música era em compasso muito lento e dançante e, embora muito formal, possuía muita graciosidade.

O baile ocorreu no teatro. Nada me surpreendeu tanto quanto a distribuição da casa: todas as partes que não estavam efetivamente ocupadas pelos dançarinos estavam abertas às mais baixas classes da sociedade, de modo que todas as passagens para os camarotes, os fundos da plateia, estavam preenchidas por quaisquer pessoas que quisessem espiar. E ninguém jamais pareceu sequer conceber a possibilidade de uma conduta inadequada por parte deles. Como são diferentes os hábitos dos ingleses em noites de gala!



Não sabemos se Darwin dançou nesta ocasião em Montevidéu. Mas a última frase nos deixa pensar que ele conhecia bem os hábitos ingleses dos quais os bailes faziam parte. Também no tempo em que viveu na Universidade de Cambridge, antes desta viagem, pode dar vasão aos seus gostos por diversidades como culinária, excursões, jogos, pintura, música e... bailes*. De qualquer forma, aquele momento num continente distante, incitou reflexões bem variadas... Não deixa de ser um relato bastante atraente o do dia 23 de novembro de 1832, trazendo a pauta em apenas dois parágrafos uma heterogeneidade de relações, percepções e opiniões que aglutinaram encanto, crítica, política, diferenças culturais e sociais, expressão feminina e mais, comportamento, tradição, inovação, costumes, música, dança... Quase quatro décadas depois Darwin mostrava ainda mais profundidade no olhar sobre cadência, ritmo e suas decorrentes inspirações. Em seu livro A Origem do Homem, de 1871, registrou: “a percepção de cadências musicais e de ritmo provavelmente é comum a todos os animais e sem dúvida depende da natureza fisiológica comum de seus sistemas nervosos”.

Talvez falte aos nossos cientistas de hoje um pouco deste desprendimento para articular com alegria e empolgação a variedade de ciências e vertentes dos pensamentos que construímos. Talvez falte arrojo para ousar a ver a natureza por ângulos menos limitados do que estes obtusos aos quais estamos adestrados... Talvez falte um pouco da música e da dança que ensinam liberdade a inteligência humana.







Saiba mais:



RIZZI, Milton. Enfermedades y muerte de Charles Darwin. Rev. Méd. Urug.,  Montevideo ,  v. 32, n. 2, p. 123-130,  jun.  2016.  

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