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sábado, 5 de setembro de 2020

Metodologia fotográfica, transparência e ciência cidadã

 

Foto: Maristela Zamoner. Borboleta da espécie Agraulis vanillae maculosa ovipositando em planta da espécie Passiflora lepidota.


Os estudos que viabilizaram descobertas como esta da raríssima Passiflora lepidota (confira AQUI), foram estruturados de maneira inovadora, apoiados em novas tecnologias que permitiram uma transparência inédita, pois os dados brutos, ou seja, as fotografias e seus metadados, tiveram disponibilização integral ao público, e no próprio ritmo de desenvolvimento do estudo. No caso dos estudos propostos, foram literalmente milhares de registros, diretamente apresentados por meio de plataforma de ciência cidadã, a qualquer interessado no mundo (confira AQUI). Nenhum exemplar precisou ser morto para obtenção de resultados indiscutivelmente relevantes. 

Essa transparência que as novas tecnologias permitem, oportunizam a todo especialista do mundo, que tenha interesse nos grupos registrados e compartilhe da visão das metodologias não destrutivas e participativas, se integrar abertamente ao processo. Este é um diferencial atípico para os padrões tradicionais de produção de conhecimento na área. Portanto, seus caminhos também são inovadores.

Quando trabalhamos com métodos tradicionais, pelos quais os dados brutos não são disponibilizados publicamente, a resolução das identificações de espécies fica dependente, exclusivamente, de quem tem acesso às informações coletadas ou, como em muitos casos, aos exemplares que foram retirados do ambiente, sacrificados e armazenados em coleções científicas não abertas ao público em geral. Desta forma, não há como um especialista interessado tomar conhecimento desse conteúdo, se não sendo pessoalmente contatado. E por consequência, também não há como se checar o processo das identificações destes especialistas publicamente.

Estudos abertos, que dão publicidade integral de seus conteúdos e dos debates em torno de suas identificações, invertem esta lógica uma vez que envolvem milhares de registros permitindo a livre participação de todos os interessados, inclusive especialistas, por meio das práticas que se integram a caminhada da ciência cidadã. Registros de biodiversidade disponibilizados a público, estão disponíveis como fonte bibliográfica a ser consultada.


Foto: Maristela Zamoner, obtida em campo. Direitos reservados. A espécie da borboleta é Arzecla straelena.


O caso da Arzecla straelena, detalhadamente discutido no livro Discussões sobre fauna (Schwartz, Morato e Zamoner, 2020) mostra bem os benefícios e avanços trazidos por estudos inovadores que dão publicidade integral dos dados brutos do estudo. 

A publicidade de uma quantidade de dados enorme permitiu a um especialista de outro continente, que tem interesse no grupo e nesta metodologia inovadora, entendendo seus valores e potenciais, checar identificações de registros do gênero Arzecla, demonstrando a necessidade de ajustar suas identificações. Este caso mostra claramente a inversão da lógica tradicional viabilizada pela transparência. 

Perde o sentido que especialistas sem interesse nestes métodos inovadores, as vezes em situação de conflito de interesses, sejam pessoalmente convidados a se manifestar frente a uma quantidade tão grande de registros. Isto acaba sendo otimizado apenas para casos isolados, contatos de confirmação, depois de aberta publicamente a discussão justificada do reconhecimento taxonômico. Foi o que ocorreu com a confirmação da espécie Arzecla straelena feita pelo seu próprio descritor que, generosamente, explicou em detalhes a razão do reconhecimento da espécie, admitindo inclusive sua distribuição geográfica mais ampla. Mudanças de paradigmas advindas de novas tecnologias exigem também soluções e metodologias inovadoras.


Foto: Maristela Zamoner. Obtida em campo. Direitos reservados. Espécie de borboleta não descrita, pertencente ao gênero Splendeuptychia.

Um outro registro realizado por meio destas tecnologias inovadoras merece discussão. O registro foi realizado em uma área adquirida há cerca de três décadas pelo proprietário, na qual existia apenas uma plantação de milho. O proprietário replantou espécies da Mata Atlântica recuperando aspectos originais e já conta, por exemplo, com araucárias em reprodução. Neste local corre um estudo de borboletas por metodologia inovadora, não destrutiva, apoiada em fotografias e novas tecnologias. 

Um dos seus registros é particularmente importante. Uma borboleta do gênero Splendeuptichia foi registrada no local, disponibilizada em plataforma de ciência cidadã e nela recebeu a contribuição do especialista Keith Willmott, do Museu da Flórida, que informou se tratar de uma espécie não descrita.

Neste momento surge o contraponto tradicional do questionamento sobre a inviabilidade da descrição de uma espécie registrada apenas em fotografia.

Esta questão foi brevemente discutida no livro Lepidopterologia, novas perspectivas em pesquisa e conservação (Schwartz e Zamoner, 2018), informando que o International Code of Zoological Nomenclature já admite descrição de novas espécies da fauna a partir de registro fotográfico. E entendemos que este tipo de atividade mereça evoluir tecnicamente, acontecendo de forma mais ampla e intensa. 

Considerando as continuadas reduções de áreas naturais e a possibilidade de coletas destas espécies tão raras se configurarem como mais uma pressão negativa para esta fauna, é cabível começar a viabilizar mais amplamente as descrições de espécies por fotografias. 

Precisamos avançar urgentemente além das metodologias tradicionais restritas a coletas, sacrifícios e armazenamentos de borboletas. É tempo de deixar as coletas e sacrifícios para casos nos quais ainda são insubstituíveis, e sempre buscando mais avanços na direção de métodos não destrutivos.

Mas o quadro todo que envolve as coletas e coleções cientificas é muito mais complexo do que parece e este caso pode ser ainda mais ilustrativo do que já é para o questionamento das descrições de espécies por fotografias. 

Relembrando, temos uma espécie não descrita registrada viva em fotografia e um especialista que informa ser sua ocorrência conhecida para os estados de São Paulo e Paraná. Portanto, a maior probabilidade é que mais de um exemplar desta espécie já tenha sido coletado, sacrificado e armazenado em uma ou mais coleções científicas. Como esses acervos não foram democratizados, a população fica impossibilitada de comparar livremente o registro fotográfico a exemplares já coletados, independentemente de estarem ou não descritos. É necessário aguardar que alguém a descreva e democratize imagens dos indivíduos coletados. E, como muitos outros, estes exemplares devem jazer aguardando que suas mortes se justifiquem pelo menos através de sua descrição. Esperamos que isto ocorra antes de se tornarem cinzas em mais um incêndio, como o irreparável ocorrido com o acervo extraordinário de lepidópteros que existia no Museu Nacional em 2018.

Quando pretendemos uma postura cientificamente honesta e comprometida efetivamente com a conservação da natureza, precisamos avaliar parcimoniosamente as possibilidades. 

Ao planejar a metodologia de estudo para uma área, a pergunta honesta a se fazer é:


- Existe prova científica de que coletar borboletas neste local é seguro para conservação de suas comunidades?

Esta é a pergunta honesta porque nosso Direito Ambiental atual se apoia em princípios como o Princípio da Precaução. Não se pode mais admitir ações cujo impacto sobre a fauna seja desconhecido, sob o argumento de que não existe prova da possibilidade de prejuízo. E há que se considerar ainda que existem alternativas viáveis na atualidade.

Não é aceitável inverter ou corromper perguntas que têm compromisso ético, científico, legal e de conservação.

São importantíssimos os contrapontos tradicionais levantados perante o uso de novas tecnologias que permitem o conhecimento de comunidades de borboletas substituindo suas coletas, sacrifícios e armazenamentos por fotografias e outros métodos. E estes contrapontos serão produtivos quando estimularem avanços, quando partirem de posturas e premissas efetivamente científicas e comprometidas com a conservação das espécies. Precisamos almejar juntos a lógica científica, a construção de valores voltados para conservação e o respeito ao atual Direito Ambiental brasileiro, que tem origem em compromissos internacionais assumidos pelo país.

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